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Latinoamérica

Com o pé na estrada, pelo direito à terra


12 mil pessoas iniciaram a marcha nacional rumo a Brasília, onde apresentarão reivindicações sociais ao governo

Marcelo Netto Rodrigues
enviado especial a Goiânia (GO)
Jornal Brasil de Fato

Os 12 mil participantes da Marcha Nacional pela Reforma Agrária, que dia 2 saíram de Goiânia rumo a Brasília, debaixo de sol forte, já haviam vencido, até dia 4, data do fechamento desta edição, 44 dos 220 quilômetros da BR-060. A marcha deve chegar à Esplanada dos Ministérios dia 17. Das 30 audiências agendadas pelos organizadores com quase todos os ministérios para discutir uma pauta com 16 pontos, 12 já estavam confirmadas nos primeiros dias da marcha.
Os caminhantes, organizados em três filas, se estendem por quatro quilômetros de extensão e têm levado cinco horas para dar conta de um percurso médio diário de 16 quilômetros, a uma velocidade de 3 km/h. A rádio itinerante "Brasil em Movimento" FM 88,5, criada especialmente para a marcha em parceria com a Associação Brasileira de Rádios Comunitárias (Abraço), é a única forma eficaz de comunicação simultânea com os marchantes – cada um carrega um radinho para escutar as orientações.
Para se ter uma idéia do tapete vermelho formado pelas bandeiras ao longo do caminho, quando a primeira delegação completa o trajeto, a última ainda leva quase duas horas para chegar. Em um sistema de rodízio, que procura valorizar todas as delegações, a cada dia um Estado diferente puxa a marcha, indo para o final da fila no dia seguinte.
A imagem impressiona. A quantidade de pessoas é tamanha que quem está marchando raramente consegue ver o início ou fim da coluna. Militantes de cada Estado, identificados por coletes de diferentes cores com o símbolo do movimento, dividem-se em setores de saúde, segurança, infra-estrutura e comunicação. A cada 3 quilômetros, caminhões-pipa fornecem água aos marchantes para atenuar o calor excessivo do Planalto Central. O espírito de sacrifício está estampado no rosto de cada caminhante, como o sem-terra da Bahia que caminha com uma muleta, e outro do Rio Grande do Norte, que usa um triciclo movimentado por manivela.
Todo esse aparato faz a marcha funcionar de forma orgânica e coordenada, com 12 mil pessoas agindo como se fossem uma só. É inacreditável constatar que, em meio a tanta gente, não acontecem brigas, confusões ou furtos. As barracas de cada Estado ocupam quase um quilômetro quadrado, em combinações impensáveis. Não é em qualquer lugar que Bahia faz fronteira com São Paulo ou Rio Grande do Norte com Santa Catarina e todos se entendem.
A marcha é uma cidade em movimento. Todos os dias, o acampamento é montado e desmontado, avançando lentamente em direção à capital federal. Para que tudo esteja pronto quando a marcha chega a um novo local de acampamento, mais de mil militantes se antecipam em 31 caminhões, 9 ônibus e 27 carros. Em cerca de quatro horas, armam gigantescas tendas brancas (com capacidade de até 800 pessoas cada), providenciam água, banheiros e descarregam as bagagens mais pesadas dos participantes.
Deixar os pertences nas mãos de pessoas desconhecidas, em meio à bagagem de 12 mil pessoas, exige um alto grau de desprendimento e confiança no outro. Ainda mais quando – como acontece com a maioria dos marchantes – se leva nas malas quase tudo o que se tem. Mas não há incidente. Na chegada, todos recuperam suas coisas, devidamente distribuídas pelas tendas de cada Estado.
Mochilas nas costas
"Estamos começando mais uma jornada que os livros de História vão registrar no futuro, e vocês são os atores", disse João Pedro Stedile, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a militantes sociais concentrados no ginásio do Estádio Serra Dourada, um dia antes do início da marcha.
"Daqui sairão definições para os nossos próximos passos", acrescentou Ademar Bogo, do setor de formação nacional. "Com a mochila nas costas, trocamos de lugar todos os dias para importunar a burguesia", disse Bogo, referindo-se aos militantes do MST, que para ele devem ser vistos como guerrilheiros de um outro tempo. Para caminhar, cada participante recebeu uma mochila e um chapéu de palha (no lugar do tradicional boné vermelho).
Bogo prevê que um dia os trabalhadores voltarão a Brasília "para enterrar vícios e defeitos e plantar árvores que produzam frutos para alimentar a sociedade brasileira que hoje tem fome de comida, sonhos e esperanças".
Amigos do MST
Além das delegações de sem-terra de 22 Estados mais o Distrito Federal, também marcham "amigos do MST" de diversos países: África do Sul, Bolívia, Espanha, Itália, Paraguai, Suíça e Turquia.
José Maria Recio Rivas, do grupo de apoio Red Euro-Latinoamericana, da Espanha, se diz apaixonado pelo MST: "A organização de milhares de pessoas conduzida pelo movimento é surpreendente. Aqui me alimento de companheirismo e amor diariamente. Todos têm responsabilidades ao mesmo tempo em que se sentem protagonistas da luta. Se um dia eu vier morar no Brasil, só haverá sentido viver entre os sem-terra."
Caminham também representantes dos movimentos Atingidos por Barragens, Pequenos Agricultores, Mulheres Camponesas, Trabalhadores Desempregados, Cáritas, quilombolas, Trabalhadores Sem Teto, pela Estatização das Fábricas Ocupadas e 90 religiosos – freiras, aspirantes a freiras e seminaristas da Conferência de Religiosos do Brasil que vão se revezar ao longo da marcha –, além de um repórter da Al Jazeera no Brasil.
Primeiro de maio
Numa espécie de aquecimento para a marcha, no Dia do Trabalho, 1o. de maio, a delegação de Minas Gerais conduziu os marchantes por quatro quilômetros até a Praça Cívica, no centro de Goiânia, onde houve um ato político-cultural. O arcebispo dom Washington Cruz e o pastor Ariovaldo Ramos, da Aliança Evangélica Brasileira, lembraram que Jesus também não se instalou comodamente no norte da Palestina.
Durante os discursos, entre os quais o do prefeito de Goiânia, Íris Rezende (PMDB), foram citados os mártires da luta pela terra de cada Estado. Goiás foi lembrado por ter sido o palco da resistência camponesa em Trombas e Formoso, nos anos 50, e por ser o berço da Comissão Pastoral da Terra e do MST. Ao final, houve a benção de pães que foram repartidos entre os sem-terras.
MST entrega pauta da marcha ao ministro Rosseto
Beatriz Pasqualino
de Brasília (DF)
Uma comissão de representantes da Marcha Nacional pela Reforma Agrária entregou, dia 3, a pauta com as reivindicações da mobilização ao ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, e ao presidente nacional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Rolf Hackbart. Esse foi o primeiro e o mais importante dos diversos encontros agendados com representantes do governo para acontecer durante a marcha.
Os pontos apresentados no documento se referem ao fortalecimento do Incra e à situação dos acampamentos e assentamentos. O descontigenciamento dos recursos para a reforma agrária foi a questão mais enfatizada durante a reunião. "Nós não aceitamos que os R$ 2 bilhões da reforma agrária sejam destinados a pagar juros da dívida", disse Fátima Ribeiro, da direção nacional do Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Ela se refere ao corte anunciado no orçamento do ministério de 2005. Ante às críticas, o governo prometeu que iria desbloquear R$ 400 milhões desse corte. Até agora, no entanto, a liberação efetiva de recursos se limitou a R$ 250 milhões. Com isso, a meta do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) de assentar 400 mil famílias até o fim de 2006 fica inviabilizada.
O presidente do Incra traçou um cenário pessimista: "Os recursos para obtenção de terra acabam no próximo mês. Estamos selecionando terras para não gastar todo o dinheiro". Mas o ministro Rossetto está otimista: "Estamos confiantes – e esse é o compromisso do governo – de assegurar recursos integrais para o cumprimento de todas as metas do PNRA".
Na opinião do ministro Rossetto, todos os pontos citados na pauta dialogam com o fortalecimento de uma reforma agrária qualificada para o Brasil. "Minha expectativa é de que possamos avançar bastante com relação a esses temas e responder a esse grande sonho de milhares de famílias que querem trabalhar na terra".
Na reunião, ficou acertado que nos próximos dias serão negociados os diversos pontos de reivindicações para que, no começo da próxima semana, o ministério se pronuncie oficialmente se vai atender à pauta completa. Como lembrou Fátima Ribeiro, "a esperança é a última que morre e é por isso que estamos em marcha".
"Seu" Luiz, lugar de honra na linha de frente
Dez Estados estão à frente da delegação de São Paulo quando "seu" Luiz Beltrami, 97 anos incompletos, percebe que a delegação de Minas Gerais já está puxando a marcha em direção ao centro de Goiânia. De botas em vez de chinelos, ele – que marcha por São Paulo – empunha sua bandeira do Brasil com flâmulas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra costuradas. Com muita pressa de chegar na linha de frente da marcha, acelera o passo e passa rapidamente pela delegação do Maranhão. Alcança a de Mato Grosso do Sul, quando alguém grita para os mais jovens: "Olhem, é o ‘seu’ Luiz, de 97 anos, sigam o exemplo dele". Duas pessoas se colocam em seu caminho para tirar fotos.
Nesse momento, ele já ultrapassou as delegações de Pernambuco e do Rio Grande do Sul, mas faltam ainda dois quilômetros. "Seu" Luiz põe a mão na coxa esquerda, quando o trajeto fica mais íngreme e confessa: "Na subida, tem de manerar o passo, senão amanhã ninguém agüenta mais caminhar".
Outro marchante se admira: "Eu te disse, eu estava falando do velhinho e olha ele aí". Alguém replica: "Ah, ele só vai até o centro de Goiânia, não vai marchar até Brasília, não". Outro responde: "Você não sabe que ele andou 1580 quilômetros de São Paulo a Brasília na marcha de 1997?".
Falta um quilômetro e "seu Luiz", que anda com o dobro de velocidade dos outros caminhantes, chega à delegação do Espírito Santo. Ele afasta as faixas que atrapalham sua passagem, numa última tentativa de estar à frente da longa fila dos milhares de caminhantes. Ainda não consegue.
Dia 11, quando a delegação de São Paulo estiver à frente da marcha, "seu" Luiz poderá finalmente repetir o seu feito das marchas de 1997 e 1999 – desta vez, ele puxará 12 mil pessoas, fazendo pensar que não foi um simples acaso ele ter alcançado o Espírito Santo na marcha descrita acima. (MNR)