Limites da democracia liberal na época da recolonização capitalista
Valerio Arcary
Rebelión
Há vinte anos a economia capitalista brasileira parou de crescer, ou cresceu por espasmos, em um ritmo muito pequeno. Na última década, em especial, um ajuste econômico brutal foi feito. Entretanto, constatemos o paradoxo. Nesse marco dramático, o Brasil viveu o intervalo de democracia liberal mais longo de sua história republicana, vinte anos de eleições sucessivas a cada dois anos. Diante de uma desigualdade social crônica, o descontentamento popular veio se manifestando nos processos eleitorais, mas poderá desbordar os limites da alternância no poder, como sugerem as situações argentina, colombiana, venezuelana. Enunciemos, portanto, o argumento: quais são os limites dos regimes democráticos na periferia do capitalismo em geral e no Brasil, em particular, diante da nova situação? Qual foi, historicamente, a relação dos regimes liberais com as liberdades democráticas?
É preciso reconhecer que o terreno dos prognósticos é perigoso. Mas é inevitável para os que se reivindicam do marxismo. A capacidade de previsão coloca as representações políticas das diferentes classes em posição de vantagem relativa invejável. Como os prognósticos são necessários, as analogias são inescapáveis. São referências indispensáveis para a compreensão do novo, ainda que admitindo suas limitações intrínsecas, porque a história nunca se repete. A realidade da luta de classes é sempre uma esperança que se arranca ao futuro, e é imprevisível. Isto posto, adiantemos algumas idéias provocativas do debate. Os acontecimentos dos últimos quatro anos sugerem que a América Latina, ou pelo menos alguns de seus países chaves, parece evoluir para uma situação de intensas lutas de classes, em um patamar qualitativamente mais elevado que na década passada. Abriu-se uma nova etapa política no continente. Alguns países já estão conhecendo situações pré-revolucionárias. Já vimos com os regimes democrático-liberais podem se adaptar plasticamente a crises econômicas gravíssimas. Mas poderiam os regimes liberais na periferia, as atuais democracias tuteladas em processos de recolonização, cada vez mais atados aos compromissos de Estado que independem de resultados eleitorais, absorver as crises provocadas por sucessivas vagas de mobilização revolucionária? Quantos mais vice-presidentes serão convocados a apagar incêndios contitucionais? Instabilidade crônica da democracia liberal na América Latina
Durante a década dos anos 90, a América Latina viveu um período de ajuste estrutural do lugar de suas economias no mercado mundial, e de seus Estados no Sistema Mundial de Estados. Foi um período de regressão econômica e social que pode ser caracterizado como o início de uma nova vaga de recolonização. A força dos regimes democráticos liberais que surgiram nos anos 80 da queda de ditaduras foi posta à prova. Inúmeros países conheceram, pela primeira vez em suas histórias, o impedimento de presidentes eleitos pelo sufrágio universal: Andrés Perez na Venezuela, Collor no Brasil, Fujimori no Peru, entre outros, depois de se apresentarem com a plataforma política do desenvolvimentismo, viram-se encurralados em longos processos jurídicos policiais.
No entanto, o descontentamento popular com as seqüelas dos ajustes neoliberais, mesmo quando se manifestou em insurreições como no Equador, em Janeiro de 2000, e na Argentina em Dezembro de 2001, ou em impressionantes lutas contra privatizações, como em Cochabamba na Bolívia ou Arequipa, no Peru, questionando a legitimidade de regimes odiados, ainda não ultrapassou os limites da democracia liberal. A mudança através do voto continua sendo o terreno por onde se expressa o mal estar dos trabalhadores, das massas camponesas e indígenas, das classes médias empobrecidas, e da juventude. Mas, depois de quase duas décadas de sucessivas eleições, a desconfiança cresce, porque a mão não tão invisível do mercado seqüestra a vontade expressa pelo sufrágio universal: De La Rua chamou Cavallo para que tudo continuasse como d’antes no castelo de Abrantes. Paradoxalmente, a esmagadora maioria da esquerda latino-americana, reunida no Fórum de São Paulo, assume a defesa dos regimes democráticos liberais, e seus limites, como seu horizonte estratégico programático.
Depois da vitória eleitoral de Lula, partidos que se apóiam no sentimento de mudança, triunfam pela América Latina afora. Como no Equador, com Gutiérrez e, possivelmente, na Bolívia, onde a fraude é endêmica, e Evo Morales perdeu no Congresso a vitória que parecia ter conquistado nas urnas. Em futuro próximo, acompanharemos eleições no Uruguai e Argentina. Na República Oriental a Frente Ampla é favorita. E ninguém sabe sequer se a maioria da população Argentina referendará uma eleição presidencial divorciada de eleições gerais, como querem os partidos do regime: uma abstenção de mais de 50% é até provável, fortalecendo a campanha QSVT (que se vayan todos).
Mas, ao mesmo tempo, as forças de oposição ao neoliberalismo anunciam compromissos com a preservação dos contratos: o acordo com o FMI no Brasil, e a dolarização no Equador, por exemplo. Se a eleição de partidos de esquerda de inspiração social-democrata tem sido parte da rotação de forças de oposição no poder na Europa, há muitas décadas, ainda é raríssima na América Latina.
Allende foi eleito no Chile, em 1970, com mais de um terço dos votos e confirmado em um segundo turno no Congresso. Agora, em 2003, na efeméride dos trinta anos do golpe de Pinochet, teremos uma excelente ocasião para refletir sobre as causas de sua derrubada. Jango chegou ao poder depois da renúncia de Jânio Quadros, e o destino de seu Governo não foi diferente. A história nos revela que o capitalismo latino americano e suas burguesias não assimilaram sequer governos com resistências nacionalistas limitadas, como foram os Governos Perón e Vargas nos anos cinqüenta, ainda que com fortes tensões internas e divisões irreconciliáveis. O primeiro foi derrubado por um golpe e o segundo se suicidou, em condições de aguda exasperação política estimulada pela embaixada americana.
Curiosamente, as forças burguesas do continente não confessam o mesmo entusiasmo e o mesmo compromisso com o regime democrático que os partidos da esquerda institucional. A reação capitalista não hesitou em tentar o golpe de Estado na Venezuela, em Abril de 2002, e seria ingênuo descartar que essa hipótese continua disponível no repertório da contra-revolução. A greve geral em Caracas de dezembro de 2002, sob a bandeira da realização de um referendo para interromper o mandato de Chavez, parece ser mais um movimento de acumulação de forças em direção a uma nova aventura golpista. Ainda que as classes dominantes latino-americanas tenham preferência pela cooptação das forças anti-liberais, não descartam o método da contra-revolução mais implacável. As ironias da história: duas décadas de estagnação coincidindo com vinte anos de regime democrático liberal
Há vinte anos a economia capitalista brasileira parou de crescer, ou cresce por espasmos, em um ritmo muito pequeno. Na última década, em especial, um ajuste econômico brutal foi feito. Suas seqüelas são incontornáveis: desnacionalização em grande escala, levando a que quase metade do PIB esteja nas mãos de grupos estrangeiros, privatizações, e endividamento interno e externo estruturalmente mais alto, abertura comercial "selvagem". Três anos de Collor e oito anos de FHC deixaram o país na iminência de um défault. A suspensão dos pagamentos externos pode vir a ocorrer pela via da catástrofe. Esta é, economicamente, o oposto de uma moratória soberana para proteger as reservas.
Entretanto, constatemos o paradoxo. Nesse marco dramático, o Brasil viveu o intervalo de democracia liberal mais longo de sua história republicana, vinte anos de eleições sucessivas a cada dois anos. Mas, qualifiquemos o problema: que tipo de regime democrático? Nasceu sem liberdades civis plenas, e sacudido pelo terremoto das Diretas em 84, quando cerca de oito milhões de pessoas foram as ruas, correspondendo a quase 20% da população economicamente. Absorveu a crise da derrubada de Collor, depois da irrupção do maior movimento estudantil desde 68, mas sofre uma dificuldade de legitimação crônica diante das massas. À diferença de outros países, no Brasil, a classe dominante tem tido, historicamente, uma dificuldade persistente em ganhar até a classe média, para não falar na maioria do povo, para a defesa do regime. As bases políticas de dominação burguesa através do sufrágio universal, herdeiras do clientelismo rural, e depois transportadas para a periferia das grandes regiões metropolitanas, embora existam, são débeis.
Uma tensão social crônica está na raiz desse fracasso. Afinal, boas razões nunca faltaram para que o Brasil fosse tão conflitivo. É comum fundamentar essa instabilidade na desigualdade social, mas somente isso, embora verdadeiro, seria insuficiente. Uma luta de classes molecular, que sempre transpirou por todos os poros, se traduziu numa instabilidade política duradoura: 388 anos de escravidão, 389 de Estado com formas monárquicas, 41 de regime autoritário-oligárquico, 36 de ditadura semifascista, não aconteceram em vão. Na sociedade brasileira urbano-industrial, a luta de classes tem uma intensidade comparativa muito mais elevada que em países ainda predominantemente agrários da Ásia, apesar dos fluxos e refluxos das diferentes conjunturas. As placas tectônicas da luta de classes se movem muito lentamente na sociedade brasileira, mas, desde 1999, uma alteração profunda na relação de forças entre as classes vem ocorrendo, e só esse movimento, que podemos resumir na abertura de uma situação pré-revolucionária, pode explicar a vitória do PT.
Agora, depois de três eleições nacionais perdidas, o PT chega à presidência. Se setores dissidentes das classes dominantes apoiaram a Frente Popular antes das eleições de Outubro, preocupados com as seqüelas de uma década de recessão e desnacionalização, depois da posse de janeiro de 2003, a esmagadora maioria do capital, além do próprio FMI e dos credores externos, não escondem a sua satisfação com as garantias oferecidas pelo governo Lula. Muitos se apressam a concluir que esse apoio burguês seria efêmero, e resultaria de uma acomodação transitória à iniciativa espantosa do governo do PT de insistir em uma pauta de reformas constitucionais, como a autonomia do Banco Central e a Previdência, preservando um mega ajuste fiscal.
Esta interpretação ajuda a compreender o que seria impensável há dez anos atrás: porque não há oposição de direita ao governo Lula. Valoriza a preservação da política macro-econômica do Governo FHC, e podemos considerá-la, em geral, correta. Parece insuficiente, no entanto, se considerarmos a inteligência política estratégica burguesa no Brasil. Depois da derrota do seu Governo e do seu candidato, que nunca deixou de ser José Serra, o capital ficou preocupado com a saúde do seu regime de dominação. Deveríamos, portanto, considerar a hipótese de que o apoio a Lula resulte de uma compreensão mais profunda da gravidade da situação política e econômica, à luz dos acontecimentos recentes na América Latina. Em outras palavras, a crise já é muito grave por si só.
Cada época histórica tem a sua "grand peur". O maior temor das classes dominantes é que se abra uma primeira vaga de lutas generalizadas, como a 1978/79, ou a de 1987/89. Quer de Lula um desempenho como o de Mandela: um estadista capaz de dizer não e tranqüilizar a sua base social histórica. A burguesia brasileira espera que o PT, e os movimentos sociais sob a sua influência, sejam os instrumentos da estabilização social, ou os artífices do Pacto Social, tantas vezes ensaiado desde a eleição de Tancredo Neves e José Sarney no Colégio Eleitoral de 1984, e tantas vezes frustrado. Mas temem as seqüelas da ação de um "Corpo de Bombeiros" que não tem água para apagar o incêndio. Não ignoram que, se o líquido usado for inflamável, a situação pode facilmente deixar de ser controlável. O processo de recolonização econômico-social é compatível com o regime democrático liberal?
Arrisquemos o argumento, resumidamente: o Brasil vive uma encruzilhada histórica que o colocará, mais cedo ou mais tarde, diante de dois dilemas irredutíveis. Mantidas as negociações da ALCA, o país será reduzido à condição de colônia, isto é, terá um estatuto no mercado mundial ainda mais dependente que no período do pós-guerra.
Se diminuído a uma condição neocolonial, porque dependente de uma inserção ainda mais vulnerável no Sistema Mundial de Estados e no mercado mundial, a contradição entre a regressão econômica, com suas inevitáveis seqüelas sociais de um lado, e a forma democrático-liberal do regime de dominação política, tal como o conhecemos, do outro, pode se demonstrar insustentável. Os limites históricos das "democracias coloniais" serão muito estreitos para conter a exacerbação das lutas de classes que se avizinha. Os traços bonapartistas e autoritários do regime político terão que se acentuar para garantir essa "passagem" histórico estrutural.
Sem esse marco todas as análises de conjuntura parecem um exercício intelectual estéril. O novo lugar do Brasil no Sistema Mundial de Estados será muito semelhante ao das colônias comerciais do século XIX. Não é outra a discussão que já é abertamente realizada nos fóruns do FMI e do Banco Mundial, quando se analisa a proposta de "concordatas" para países e, preventivamente, se admite que os regimes de défault, como a situação da Argentina depois de dezembro de 2001, de exceção, poderão se transformar em regra.
Tão ou mais grave ainda, é necessário acrescentar que esse processo de recolonização não trará somente sacrifício de soberania nacional. Ele supõe um agravamento das condições materiais de existência de muitos milhões de pessoas. As frágeis conquistas sociais da geração que viveu o pós-guerra, como a previdência social, para não lembrar do desmonte dos serviços públicos, estarão seriamente ameaçadas.
Seria ingênuo considerar que uma contra-revolução social desta natureza poderia ser politicamente indolor. As novas condições de dominação imperialista, e a violência do ajuste econômico-social, exigirão a limitação das liberdades democráticas conquistadas ao longo dos últimos vinte anos, especialmente daquelas que são vitais para a resistência dos movimentos sociais.
Mas expliquemo-nos. Este processo de ajuste não impedirá que o calendário eleitoral continue de pé. Como, aliás, já aconteceu anteriormente na história política do país. A título de exemplo das ameaças às liberdades, desloquemos nossa atenção para o problema estratégico do controle da mídia: "A aprovação, pelo Congresso, com o inexplicável apoio do PT, da participação do capital estrangeiro nos meios de comunicação, terá conseqüências políticas incalculáveis. Todos nós sabemos que, quem paga, manda, e que 30% de capital, em qualquer tipo de empresa, é um instrumento poderoso de persuasão (...) O que ocorre hoje na Venezuela deveria servir-nos de advertência. Os meios de comunicação do país vizinho estão todos eles controlados pelos inimigos do regime, associados aos interesses do capital estrangeiro (pense-se logo no petróleo(...) Pelo menos nesse caso específico, o PT preferiu ficar com os empresários do setor, ávidos por obter recursos externos para a capitalização de seus negócios."[1]
O controle das televisões e jornais é somente um aspecto, evidentemente, mas não é secundário. Não esqueçamos que o regime democrático liberal pressupõe a existência de eleições, mas não garante que o usufruto das liberdades democráticas seja igualitário para todas as forças sociais e políticas. Muito ao contrário. A democracia surgiu das necessidades da revolução anti-aristocrática, mas só se consolidou a partir das necessidades da contra-revolução burguesa
Enunciemos a questão: por quê podemos falar do século XX como a época da "partidocracia"? Qual foi o contexto histórico da afirmação dos modernos regimes democráticos liberais? Como e porque eles se transformaram na estratégia prioritária de dominação de classe burguesa? A crise da democracia representativa que se manifesta nos países centrais, na indiferença crescente da maioria dos eleitores, e nos periféricos, pela interrupção de mandatos pela mobilização política de massas, como a queda de Peres na Venezuela, Collor no Brasil, Fujimori no Peru, e mais uns tantos, é algo fugaz ou perene?
A questão em discussão parece ser decisiva. O regime de dominação política predominante nos países centrais da ordem imperialista, desde a derrota do nazi-fascismo ao final da Segunda Guerra Mundial, e em grande parte da periferia industrializada ou semi-urbanizada da economia periférica, há pelo menos duas décadas, tem sido a democracia liberal. Estamos, portanto, diante de um intervalo histórico significativo. Mais de cinqüenta anos na Europa e no Japão, e pelo menos vinte nos países da América Latina.
A forma concreta das instituições pode variar, mas, na essência, encontraremos por toda parte, a regularidade dos calendários eleitorais. Os partidos eleitorais, um dos tipos que pode assumir a forma-partido, são o instrumento chave do funcionamento da democracia liberal. Devemos reconhecer-lhes alguma eficiência, já que essa tem sido, com razoável sucesso, uma das políticas essenciais de preservação da ordem mundial.
A partidocracia, em especial na forma tão sonhada do sistema bipartidário, permite absorver as tensões sociais de baixa intensidade dentro dos limites do regime democrático, acenando com a sedutora alternância de poder. A perspectiva da história ajudará a compreender a centralidade da democracia para a dominação do Capital no último meio século.
Na passagem do XIX para o XX, as necessidades políticas de legitimação da ordem capitalista, em especial na Europa, se elevaram diante da presença do proletariado como o novo e mais importante, sujeito social da luta de classes. Primeiro na Alemanha, com o sucesso eleitoral do SPD de 1890, e depois na França, com um aumento da influência do Partido Socialista de Jaurés e Guesde que levou Millerand à participação em um gabinete de coalizão na seqüência do affaire Dreyfus. O proletariado passou a ser capaz de expressar, na forma de um programa político para a sociedade, a defesa dos seus interesses mais imediatos, e conquistou o direito de existência legal para seus partidos. Uma das inovações do final do século XIX foi o reconhecimento de que não haveria forma mais completa de defender interesses de classe, que não fosse a formulação de um programa, e não haveria maneira mais eficiente de lutar por um programa, senão construindo um partido. Mas, a força de atração da democracia sobre os aparelhos políticos dos trabalhadores se demonstrou muito mais poderosa que a capacidade do sujeito social de controlar a sua representação política. Entre 1890 e 1905 ficou claro que a classe trabalhadora já tinha perdido a homogeneidade social do período anterior para continuar realizando a sua representação somente através de um só partido. O movimento operário se dividiu, irremediavelmente, em duas alas principais: reformistas e revolucionários. Os primeiros se passaram definitivamente para o campo do regime democrático.
Em condições "normais" da vida social e política de uma nação, ou seja, quando a questão do poder não está colocada nas ruas, os partidos são a forma através da qual se expressam os conflitos de classe, em uma alternância eleitoral previsível, sem maiores sobressaltos para o regime, mas alimentando a perspectiva de que o "voto pode mudar". A perenidade da influência das alas reformistas nos trabalhadores dos países centrais repousa tanto nas conquistas sociais do passado, como nessa ilusão. Mas em condições "anormais", quando se abre uma situação pré-revolucionária, toda a estabilidade do regime desmorona, porque os limites da partidocracia de defesa da democracia são estreitos demais para conter a demanda social reprimida. As massas passam a construir outras organizações e novas direções. A fragilidade da democracia nos países da periferia é diretamente proporcional à dificuldade de consolidar uma partidocracia poderosa como no centro. É justamente porque essa estrutura de defesa do regime no Brasil é, comparativamente, mais forte que em muitos outros países da América Latina, que a atitude do imperialismo em relação ao futuro governo Lula permanece muito mais favorável, do que em relação à Argentina, onde a incerteza é maior.
Em conclusão: a consciência burguesa estratégica do perigo da revolução, a partir da Comuna de Paris e, com mais intensidade, da Revolução Russa, colocou a necessidade de fortalecimento do regime democrático. Em poucas palavras: sea democracia surgiu das necessidades da revolução anti-aristocrática, só se consolidou a partir das necessidades da contra-revolução burguesa. O nazi-fascismo, no intervalo entre guerras, e seus derivados bonapartistas no período posterior, não foram nem a primeira, nem a única, nem a mais importante estratégia política do imperialismo moderno para derrotar a revolução política e social dos trabalhadores. A força histórica da democracia-liberal, ou as dificuldades da revolução proletária em derrotá-la, é uma das chaves para compreender os impasses atuais da luta pelo socialismo. Mas seria ilusório pensar que a consolidação dos regimes democráticos na América Latina é perene. O período anterior à década de 80, assim como a recente aventura golpista na Venezuela, deve servir de alerta para os perigos do futuro. Regimes democráticos podem ser socialmente híbridos na época do imperialismo?
A premissa de que o Estado do Capital, quando vestido de roupas democráticas, seria politicamente indeterminado ou socialmente indefinido, não tem demonstração histórica convincente. A tese que afirma que, em uma democracia, as contradições de interesses sociais podem se exprimir por fora mas, ao mesmo tempo, por dentro do Estado, ao pretender "complexificar", ignora a verdadeira natureza do Estado na época do imperialismo moderno.
A hipótese irmã gêmea afirma que governos ao serviço da maioria da população poderiam exercer a sua soberania política, preservando o respeito às outras instituições do Estado. Mas não parece ter sustentação histórica. Em uma sociedade capitalista, a função do Estado tem sido sempre a de defender a grande propriedade privada. As instituições estatais não são híbridos sociais, ainda menos nos países da periferia do sistema. A presença de lideranças de organizações dos trabalhadores em Parlamentos, evidentemente, foi assimilada sem maiores dificuldades, pelos regimes democráticos, desde meados do XIX. Mas, mesmo em governos locais e nacionais, embora seja "anormal", nunca comprometeu o controle da burguesia sobre o seu Estado, como comprova a alternância de poder na Escandinávia e Inglaterra. A questão se coloca de forma muito diferente quando governos de frente popular, ou seja, de partidos operários e populares reformistas, chegam ao poder, seja por eleições ou por revoluções, mas demonstram-se incapazes de reconstruir a ordem política, ou seja, de neutralizar a vaga de lutas que direta ou indiretamente os colocou à frente do Estado. Nessas circunstâncias, como no Brasil de Jango, ou no Chile de Allende, as classes proprietárias precisam se desembaraçar destes governos para exercer, sem intermediários, a repressão. Mas a queda destes governos, e do próprio regime democrático, responde a uma necessidade mais profunda de derrotar as massas em luta.
Todo o problema fica ainda mais claro e, ao mesmo tempo, mais complexo, se considerarmos a questão das relações entre economia e política, a partir do ângulo de análise de sua refração sobre o Estado: por exemplo, a economias alemã e austro-húngara, e talvez até mesmo a russa, de meados do século XIX, eram economias capitalistas. Mas não parece tão simples a caracterização de classe dos seus respectivos Estados. O absolutismo tardio do XIX era, em essência, um resíduo feudal, ou uma máscara monárquica da reação aristocrático-capitalista, após o susto da vaga de 1848? Esta questão teórica está entre as mais complexas e remete às não correspondências, desencontros e contradições entre a natureza das relações sociais de produção dominantes, e a natureza de classe do Estado nos períodos de transição histórica, ou de revolução social.
Recorramos às analogias históricas. Grosso modo, duas posições, duas escolas de interpretação polemizam a partir de conclusões antípodas, tendo como quadro de análise a avaliação sobre a transição do feudalismo ao capitalismo, e a definição do lugar social do Estado Absolutista. Teria este sido, essencialmente, um ponto de apoio ou um obstáculo para a transição? Perry Anderson sustenta que as monarquias absolutistas eram uma excrescência histórica feudal, um resíduo reacionário defensivo diante das novas forças sociais em ascensão, em contradição (um antagonismo relativo) com as novas relações capitalistas. Wallerstein defende que desde o final da grande crise do século XIV, iniciou-se um duplo processo revolucionário anti-feudal: uma revolução social camponesa contra a servidão, que terá na derrota das guerras na Alemanha o desenlace histórico mais paradoxal, a preservação tardia da servidão, mas o triunfo da Reforma religiosa; e uma revolução econômica burguesa. A derrota, da primeira, teria criado condições mais favoráveis para a vitória da segunda que, assim, abriu o caminho para a formação de uma economia-mundo européia capitalista, sendo o absolutismo a forma transitória do Estado forte, com uma burocracia parasitária e cara, porém necessária, que corresponde à fase de acumulação primitiva. Duas hipóteses teóricas de definição da natureza de classe do Estado
A discussão está longe de ser ociosa. A esquerda eleitoral pode conquistar o governo, sem por isso mudar a natureza de classe do Estado que preserva a dominação. Em um regime democrático liberal, o executivo é uma instituição decisiva, mas está longe de ser a única a exercer o poder. O governo de um partido operário-burguês, ou de direção pequeno burguesa, mas com história, programa e relações sociais baseadas no proletariado, mesmo que sua linha política seja de adaptação ao regime, é sempre uma anomalia, em especial em países periféricos.
Este debate teórico tem uma história, e ela remete às elaborações sobre a passagem histórica do feudalismo ao capitalismo. A qualificação social do Estado e do governo tem evidentes conseqüências políticas e exige uma clarificação de critérios: ela se faz a partir do controle de classe, ou seja, tendo como critério as forças sociais que exercem o poder (como sugere a investigação de Anderson em Linhagens do Estado Absolutista), ou a partir das relações econômico-sociais que, historicamente, estão sendo mais dinâmicas, como propõe Wallerstein em O moderno sistema mundial?
Esquematizando, e portanto simplificando: o controle da superestrutura estatal define a natureza de classe do Estado? Ou são as relações sociais de produção, a estrutura de relações de poder que se move como placas tectônicas sob a superfície da superestrutura política, que determinam, em última análise, a caracterização social do governo e do Estado? Estamos em um elevadíssimo nível de abstração ao colocarmos o problema nesses termos, e isso exige cuidados.
Mas a questão permanece irredutível: o controle do Estado tanto pode se antecipar quanto se atrasar, historicamente, às mudanças nas relações sociais, como atesta a transição do feudalismo ao capitalismo. Nas Províncias Unidas, no final do século XVI, a aristocracia aceitou compartilhar o poder com a burguesia de Amsterdam para se desembaraçar das relações de vassalagem diante dos Habsburgos e da Espanha, mas na França, só a revolução de 1789 eliminou o Estado Bourbon obsoleto e tardio.
Da primeira hipótese, a de Anderson, decorre a conclusão inapelável que a lentidão secular da transição burguesa resultou do atraso histórico da revolução política. Da segunda, de Wallerstein, resulta uma apreciação das mudanças na longa duração que desvaloriza o lugar da revolução política. Como se pode facilmente concluir, este debate é chave para a discussão das revoluções do século XX.
Mas este debate remete, também, à observação do que poderíamos definir como uma anomalia da representação política das classes proprietárias, nos períodos revolucionários contemporâneos. Quando os seus partidos naufragam diante do sufrágio universal, a defesa dos interesses da classe dominante pode ser resolvida por uma via atípica, transitória, instável, substitucionista. Nessas condições excepcionais, a burguesia pode recorrer, ou aceitar a presença de forças e partidos de outras classes, como dos setores médios, à frente do Estado, diante da necessidade de frear a radicalização das massas populares. Sobre este tema, vale conferir, este fragmento de Edmundo Dias:
"A democracia não é, portanto, um valor universal. Os valores democráticos só tardiamente, e apenas sob a forma da sociabilidade do mercado, foram aceitos pelo capitalismo. Os grandes teóricos do capitalismo relutaram muito em aceitar o fato de que alguém que não tivesse propriedade pudesse governar. O suposto da igualdade foi durante muito tempo expressamente associado ao da propriedade (...). A democracia é marcada pela particularidade imposta pelo mercado, pela posição diferencial na luta, na concorrência entre proprietários ou não, nas próprias diversidades e contradiçôes possíveis no interior de cada um dos blocos antagônicos, etc, construída pelo acesso diferencial às diversas escalas de poder (econômico, político, ideológico) no interior da sociedade do Capital." (grifo nosso) [2]
Historicamente, a força da democracia se explica por essa capacidade plástica de assimilar o sufrágio universal, e admitir até a alternância de poder, sempre e quando a presença de partidos de outras classes no controle do Estado não ameace o processo de acumulação.
Ou seja, e indo até ao fim nessas conclusões históricas, uma das grandes confusões teóricas de nossa época consistiu em igualar liberdades e direitos democráticas ao regime liberal-burguês de dominação. Não seria mais apropriado distinguir a radicalidade da substância democrática do direito de voto, do direito de organização e expressão, das formas limitadas e deformadas com que esses direitos foram assimilados pelo regime burguês eleitoral de alternância no poder? Lembremos que as eleições para os representantes aos Estados Gerais convocadas pelo Estado Bourbon, na França do século XVIII, admitiram o voto da maioria camponesa, na condição de eleitores do Terceiro Estado, mas, depois da votação da Constituição, o direito de voto passou a estar restrito aos assim classificados como cidadãos ativos, ou seja os que podiam pagar impostos, criando um regime de democracia censitária. A maioria camponesa deixou de poder votar. A oculta relação conflituosa da democracia liberal com as liberdades democráticas
Um mito persistente se criou na esquerda brasileira nos últimos vinte anos. A interpretação de que a democracia foi arrancada pelos trabalhadores contra as classes proprietárias. Essa hipótese é infundada. O regime democrático liberal tem paternidade burguesa e, quando muito, uma remota ancestralidade aristocrática, na defesa que a fidalguia fez de seus direitos contra o absolutismo real, e é muito anterior à consolidação das liberdades democráticas. Não nasceu bastardo, não foi uma conquista dos trabalhadores contra a burguesia, e não tinha maior compromisso com as liberdades democráticas.
Mas a confusão tem uma explicação. Mesmo com todas as vantagens relativas de exercício do poder nos novos regimes liberais, como o privilégio de uma hegemonia sobre o conjunto da sociedade, as classes proprietárias resistiram enquanto puderam, por décadas e décadas, ao reconhecimento dos direitos democráticos para os não proprietários. Fizeram-no conscientes que o regime democrático não se confunde com os direitos democráticos.
Nos últimos duzentos anos, quatro vagas de lutas revolucionárias arrancaram sucessivas extensões de direitos democráticos, ainda que tenham estado permanentemente ameaçados, e sua generalização tenha sido acentuadamente desigual, em especial nos países da periferia. Muito resumidamente, o direito de expressão, mesmo limitado, foi o primeiro, na seqüência da revolução francesa, vencendo as resistências das censuras. Mas as organizações populares permaneceram clandestinas, mimetizando os métodos das maçonarias, como os carbonários de Buenarroti.
O direito de organização independente e legal, e manifestação, como o direito de greve, veio ao final do XIX, com a formação dos sindicatos e dos primeiros partidos operários. Os direitos civis, como o reconhecimento da necessidade das aposentadorias, entre outros, vieram depois do final da II Guerra Mundial. A última geração de direitos, às vezes qualificados como os direitos de identidades, como a orientação sexual livre, são posteriores a 68. Vale a pena contextualizar: "Com a derrubada da nobreza, o indivíduo passava a ser proprietário de si mesmo, não havia mais servidão e escravidão nesses países, o que era, obviamente,um avanço. A propriedade de si mesmo correspondia para a imensa maioria à ausência de propriedade em geral ou, ainda, à separação entre o trabalhador e os meios de produção. No entanto, ao estar privado dos meios de produção, para o trabalhador restaria buscar seus direitos através da ação coletiva, a única esfera em que poderia se opor ao capitalista na disputa pelos frutos do trabalho: a utilização de sua unidade para impor a ameaça da ausência da força de trabalho (a greve) e obrigar o capital a recuar, ainda que parcialmente. Exatamente por isso, o capitalista se opunha decididamente ao direito de coligação ou coalizão, ou seja à possibilidade de associação operária que pudesse se contrapor à força do capital. Contra essa possibilidade, os capitalistas sempre trataram de impor leis duras contra a classe operária, mas que eram justificadas em nome da liberdade individual."[3] Essa aversão histórica tem uma explicação, e não é um "atavismo de classe". Em um sentido, a burguesia teme a sua derrota, no seu próprio terreno, porque sabe que a sua hegemonia se sustenta em cima de uma fraude: a ilusão da igualdade de todos diante da lei, como compradores e vendedores de mercadorias. Tão necessária era essa usurpação do sentido da luta pela "vontade geral" para a classe burguesa, que não pôde deixar de ser denunciada por Marx quando se referia à própria Revolução Francesa: "Logo no começo da tormenta revolucionária, a burguesia francesa teve a audácia de abolir o direito de associação dos trabalhadores, que acabara de ser conquistado. Com o decreto de 14 de junho de 1791, declarou toda coligação dos trabalhadores um atentado à liberdade e à 'declaração dos direitos do homem'. A ser punido com a multa de 500 francos e a privação dos direitos de cidadania por 1 ano.". Marx se refere à Lei Le Chapelier, promulgada justamente após uma greve de operários de Paris de diversos setores profissionais que reivindicavam redução da jornada e aumento de salário. Eles haviam fundado 'sociedades fraternais' para defender-se da exploração e sustentar suas reivindicações, o que alarmou a burguesia. Cabe notar que essa Lei correspondia tanto aos interesses estratégicos da burguesia que ela não foi alterada por 70 anos."[4]
Qual é, então, o paradoxo da democracia? E, por quê a atitude diante dela dissemina até hoje tantas confusões nos círculos de esquerda? Tanto o sufrágio universal, ou seja, o direito de voto para os não proprietários, quanto o direito de organização sindical e política livre, foram arrancados por gerações de lutadores contra os estreitos limites das monarquias e repúblicas burguesas do século XIX. A democracia como regime não só não se confunde com as liberdades, como nasceram, historicamente, de processos que tiveram distintas substâncias sociais.
A profissionalização da política resultou menos das novas e complexas tarefas de administração do Estado, como nunca esquecem de nos recordar os liberais, e mais das difíceis necessidades de legitimação político-ideológicas da dominação. Se há uma lição política que a história, na aurora do século XXI, deixou para os marxistas é que a democracia é, por excelência, o melhor e mais eficiente regime de dominação do Capital, porque tem permitido, através da influência dos aparelhos burocráticos, a integração social da superestrutura político-sindical das classes exploradas.
É verdade que as relações da burguesia com a democracia são complexas, porque ela se sente desconfortável, na longa duração, diante de regimes bonapartistas que exercem o poder substituindo os partidos, e limitam as liberdades das próprias classes proprietárias, cujos interesses foram chamados a preservar. A burguesia só defende a democracia enquanto esse regime é sólido o bastante para absorver as tensões sociais, e capaz de bloquear a radicalização operária e popular. Toda a experiência histórica demonstra que as classes proprietárias não hesitam em sacrificar a sua democracia, diante do perigo da revolução anticapitalista. Marcham, quando ameaçadas, sem hesitação, em direção à ditadura.
A ironia da história fez que, diante da contra-revolução, tenha sido o movimento dos trabalhadores a última trincheira da defesa da democracia. Mas os trabalhadores ao defender a democracia, tinham as suas razões "egoístas de classe": estavam defendendo as suas liberdades democráticas. O tempo político da crise revolucionária é, justamente, o momento em que a hegemonia política burguesa é questionada, e desmorona.
Já sabemos que o Brasil de 2002 ainda não viu a primeira onda de uma vaga revolucionária chegar. Mas ela pode estar germinando, molecularmente, e ninguém pode prever quando e se as massas entrarão em cena, através de sua ação direta. Não poderia ser mais paradoxal, todavia, se os novos Governos Lula, no Brasil, e Gutierrez, no Equador, se seguirem o caminho do Governo Mandela, na África do Sul, mantendo as políticas econômicas impostas pelo FMI, e apoiados na democracia indireta dos parlamentos onde as classes proprietárias são majoritárias, viessem a ficar prisioneiros dos limites dos regimes democráticos: encurralados entre a demanda reprimida das bases eleitorais que os elegeram, e as pressões das classes proprietárias que não querem contrariar. Seriam, assim, politicamente descartáveis para todos, e ficariam suspensos no ar. * Professor do CEFET/SP, membro do conselho da Revista Outubro
[1] Mauro Santayana, Agência Carta Maior, 05/12/2002, in www.agenciacartamaior.uol.com.br.boletim [2] DIAS, Edmundo Fernandes, A Liberdade (Im)Possível na Ordem Do Capital, Reestruturação Produtiva e Passivização, Campinas, IFCH, Unicamp, 29, Setembro de 99,p.74) [3] WELMOVICKI, José, Cidadania e luta de classes, Dissertação de Mestrado defendida na Unicamp em 1999, São Paulo, Edições do Instituto Sundermann, no prelo, 2004. [4] Ibidem.