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Brasil: Entrevista a Ricardo Antunes
Governo Lula respalda-se cada vez menos na classe trabalhadora organizada
Valéria Nader
Correio da Cidadania
O Correio publica abaixo a segunda parte da entrevista que o sociólogo Ricardo
Antunes, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), concedeu ao
Correio. Na primeira parte, publicada na edição de número 595, analisaram-se os
aspectos nefastos da aprovação do projeto de lei 1.990/07 pelo Câmara Federal no
dia 11 de março, reconhecendo legalmente as centrais sindicais como entidades
gerais de representação dos trabalhadores. Inserindo essa medida no lógica do
governo Lula, Antunes não tem nenhuma complacência: em um processo de grandes
avanços e pequenos recuos, o sociólogo destaca que o governo vem devastando a
classe trabalhadora organizada, amenizando o caminho para o avanço do grande
capital.
Correio da Cidadania: Em sua última entrevista ao Correio, você mencionou que
o governo Lula fala com os pobres muito bem, mas garante mesmo é a boa vida dos
ricos – uma situação, no mínimo, capciosa, já que os governos burgueses não
dialogam com os pobres. Que governo é esse?
Ricardo Antunes: Com o Lula é diferente mesmo, há uma espécie de
semibonapartismo, onde os interesses de cima estão absolutamente preservados e
garantidos, e a relação com as massas pode prescindir dos partidos. É nítida
também uma migração da base social do governo Lula. Esse governo foi eleito com
o apoio da classe trabalhadora organizada, sindical e politicamente. Hoje é cada
vez menos ancorado na classe trabalhadora organizada e cada vez mais respaldado
pelas parcelas mais empobrecidas da classe trabalhadora, que não têm emprego,
trabalham sem organização sindical e política e vivem da esmola vergonhosa que o
governo dá sob o nome de Bolsa Família, que hoje atinge 11 a 12 milhões de
famílias, cerca de 60 milhões de pessoas.
É nesse pólo, por isso o traço semibonapartista, que o governo Lula investe
pesadamente. Eu me lembro que, há 4, 5 anos atrás, o Lula esteve no ABC e disse
que os operários de São Bernardo do Campo eram uma elite, pois pagavam o imposto
de renda. Foi vaiado. É comum esse tipo de gafe quando Lula vai a um encontro
operário organizado. Em compensação, nos rincões miseráveis, para uma família
paupérrima, que não tem trabalho, alimento, produção, nada, receber 50, 60, 70
reais por mês permite a compra da ração mínima necessária para a sobrevida.
CC: Vivemos um momento muito esquizofrênico, não?
RA: É um momento difícil, porque, digamos assim, a tragédia brasileira é que o
governo Lula deu certo para os de cima, para as classes dominantes. Quem ganha
dinheiro com esse governo? O sistema financeiro, o capitalismo financeiro, os
bancos e o grande capital produtivo; Vale do Rio Doce, Telefônica... O governo
Lula é o reino desses grandes capitais produtivos e do sistema financeiro. E
perdem com isso os assalariados médios, os de base. Claro, se você comparar com
o governo Fernando Henrique, é evidente que o atual significa uma pequena
melhora. Mas ninguém votou no Lula pensando num governo um pouquinho melhor que
o de Fernando Henrique. Votou-se em Lula, pelo menos nos setores organizados,
por uma mudança substancial, e isso passou longe.
Essa chance nós perdemos, o governo Lula jogou fora a chance de fazer algo como
está sendo feito na Venezuela, onde começaram a desmontar as engrenagens da
dominação burguesa, oligárquica; as mudanças que se fazem no Equador, que têm um
certo respaldo político do governo; as lutas da Bolívia, onde indígenas,
camponeses e trabalhadores de certo modo têm alguma ressonância no Estado. Daí a
política desses respectivos governos de nacionalização das riquezas minerais, de
petróleo, gás, minérios, e a preservação da água não como mercadoria
privatizada. Tudo isso o Brasil jogou fora.
O governo Lula tem sido capaz de fazer privatizações que o governo FH não fez. E
não fez a revisão de nenhuma delas. Lembre-se que, quando o MST fez a importante
campanha pelo plebiscito da Vale, o governo Lula disse que a situação era
intocável, que a história não andava para trás, e isso não entrou sequer na
pauta de governo. É um governo tíbio, servil, que está completamente embasbacado
com as vantagens do país "grande potência".
Nesse sentido, é curioso que, nos últimos anos, Lula tem reiteradamente feito
referências à ditadura militar, sempre elogiosas. É o governo Geisel, o governo
Médici, o Brasil cresceu... Quer dizer, recorre à ditadura militar como se
aquele fosse um período positivo da nossa história. Isso mostra a tragédia em
que nos enfiamos.
E há uma diferença do primeiro mandato para o segundo que temos de ter claro.
Depois do destroçamento interno do governo que foi o mensalão, que devassou o PT,
chegou à Casa Civil e atingiu o alto comando do partido e do governo, aconteceu
que a oposição centro-direitista errou redondamente. Imaginou que podiam deixar
o Lula seminocauteado o ano de 2005 inteiro, para chegar em 2006 e dar o golpe
final na eleição, fazendo a sucessão. Erraram rotundamente. Porque a população
percebe: entre um governo pífio como o do Lula e um governo pífio,
ultra-elitista e anódino como o do Alckmin, era melhor o primeiro. A população
tapou o nariz, não votou nele no primeiro turno, depois tapou o nariz mais ainda
e disse: "Bom, vamos votar no menos nefasto", e deu uma chance para o Lula.
E também, por motivos mais ou menos conhecidos, havia uma impossibilidade de
gestação de uma oposição de esquerda ampliada. Houve um processo eleitoral, a
Heloísa Helena teve 7 milhões de votos - o que é muito expressivo para uma
candidatura à esquerda da esquerda -, mas, com todas as dificuldades encontradas
naquele momento, era mais uma candidatura para marcar um contraponto do que para
empolgar as massas do país. Até porque a presença do Lula conquistada em 30 anos
de lutas sociais ainda tem força no imaginário popular.
CC: Esse prestígio histórico do Lula acaba atravancando muito a resistência?
RA: Claro, porque a população diz: "Pelo menos ele está tentando fazer e não
consegue". Não é isso, ele não está tentando. O Lula não tentou nenhuma medida
substantiva contra a ordem. Ao contrário, o que ele faz – digo o governo, o Lula
em si é parte dessa história – magistralmente bem é o que o governo Fernando
Henrique fez razoavelmente bem, pela ótica das classes dominantes.
O governo Lula é aquilo que as classes dominantes nunca imaginaram que seria.
Não sei se você se lembra, nas eleições de 2006, perguntaram ao ex-presidente do
Itaú, Olavo Setúbal, quem ele preferia. Ele disse: "É a mesma coisa, tudo igual.
O Lula está sendo o melhor dos mundos, estamos ganhando dinheiro como nunca, o
Alckmin também é isso, então estamos tranqüilos, é questão de gosto, quase como
time de futebol". Um ou outro, a garantia é a de que a política econômica dos
juros altos, do receituário externo, aquela política balizada pelo FMI, das
privatizações, da garantia dos recursos financeiros estrangeiros que vêm aqui,
saqueiam o país e voltam, tanto o governo Alckmin como o Lula podem garantir.
CC: Mas essa história começou lá atrás, já no primeiro mandato.
RA: E a expressão disso é que, já em 2002, quando Lula ganhou a eleição, o
presidente do Banco Central seria ninguém menos que Henrique Meirelles, que era
presidente do Banco de Boston, recém eleito deputado federal pelo estado de
Goiás, sem provavelmente nunca ter posto o pé lá, porque ele estava no jet-set
internacional. Isso dá a dimensão da privatização dentro do Estado e do governo
Lula.
Para dar um segundo elemento, que foi absolutamente surpreendente, há a
liberação dos transgênicos, que foi uma imposição das mais nefastas
transnacionais, com a Monsanto sempre à frente. Eu imagino o que não passou
dentro do governo para que a liberação dos transgênicos fosse aprovada...
CC: Ou seja, é uma capitulação atrás da outra, a exemplo também da reforma
trabalhista e sindical, que vem vindo de mansinho.
RA: Exato. Mas há um elemento também importante: naquela votação da emenda 3 –
que proibia os auditores fiscais da Receita Federal de autuar ou fechar as
empresas prestadoras de serviço quando entendessem que a relação de prestação de
serviços com uma outra empresa era, na verdade, uma relação trabalhista, em
prejuízo dos contratos de trabalho pela CLT -, que significaria um passo muito
grave no processo de terceirização e precarização do trabalho, nesse momento, o
governo Lula foi contrário. Porque o Lula, que é uma figura política muito
inteligente, percebeu o momento.
No ápice da crise do mensalão, tenho a impressão que deve ter faltado muito
pouco para ele renunciar. Quem convive lá, com o dia-a-dia do palácio, deve ter
sentido que faltou pouco para o Lula fazer como o Collor: tirar o chapéu. Não
sei se você se lembra quando ele deu uma entrevista a uma jornalista em Paris,
assumindo que tinha mensalão, mas não tinha, que era, mas não era...
Quem segurou o governo Lula na crise do mensalão foi o grande capital, que deu a
ordem de ninguém pensar em apagar o governo Lula, porque, com a economia estável,
os bancos e o grande capital ganhando como nunca, quem seria louco de abrir uma
crise política que podia detonar uma crise econômica? Portanto, a ordem do
grande capital era não tocar no governo, daí o PSDB e o PFL não assumirem a luta
pelo impeachment de Lula.
Nesse sentido, a rejeição da Emenda 3 foi muito pensada. O governo Lula deve ter
feito um balanço de que estava perdendo muito rapidamente sua base social de
trabalhadores e estava nas mãos integralmente do grande capital. Era preciso
segurar algumas pontas de apoio, porque, numa segunda crise do mensalão, ele
podia não ter mais o suporte desses setores de cima.
Mas, mesmo na primeira crise, era assim: "Vamos deixá-lo seminocauteado, o
nocaute será nas eleições. Erraram feio. E em 2006 o que o Lula faz? Continua
garantindo a boa vida para os ricos; lembre-se que uma vez ele disse que "nunca
os ricos ganharam tanto dinheiro nesse país como no meu governo". Ele diz isso
com orgulho, quer dizer, esse lado nefasto, trágico, que é a cara do governo
Lula, ele destaca com orgulho.
CC: São os pequenos recuos para avançar na mesma direção...
RA: Suponha-se que haja uma crise do segundo governo numa situação econômica de
instabilidade. Bom, aí as classes dominantes não teriam mais o que garantir. Por
isso que, no meu entender, o presidente faz uma pequena inflexão em algumas
medidas. Amplia o Bolsa Família, coopta centrais sindicais e aceita algumas das
suas reivindicações, nesse caso justas, como, por exemplo, ser contra a "pejotização",
que tiraria poder dos fiscais do trabalho.
CC: O apoio que foi dado às convenções 151 e 158 da OIT (Organização
Internacional do Trabalho) - que, respectivamente, institui a negociação
coletiva no setor público e proíbe as demissões imotivadas na iniciativa privada
- viria também nesse pacote de recuos para segurar a base social e não ficar só
nas mãos do capital?
RA: Em parte sim, em parte não. Quanto à convenção da OIT que obriga a
justificação para as demissões, sim. Mas com relação à outra, lembre-se das
medidas que também foram tomadas e que impedem o direito pleno de greve do
funcionalismo público, claramente uma imposição do FMI, do sistema financeiro,
que quer detonar o funcionalismo. E uma das formas de impedir a organização do
funcionalismo público é decretar a ilegalidade da greve.
Essa restrição ao direito de greve mostra o caráter anti-republicano do governo
Lula. Então veja, ele caminha assim, uma vez ele cede, na outra ele bate.
Esta negociação coletiva estava atada, portanto, a uma segunda medida. Qual a
segunda medida? Como o funcionalismo público passa a ter negociação coletiva,
passa a ter direito restrito de greve. Algo do tipo "agora que vocês têm quem os
represente, o direito de greve não é mais pleno". Uma concessão e uma cacetada.
No frigir dos ovos, tornar ilegal o direito de greve ao funcionalismo é um
getulismo nos anos 2000. O que Getúlio fez com o decreto lei 19770/1931? Proibiu
os sindicatos no setor público e o direito de greve, de todos os trabalhadores,
incluindo o setor público. A Constituição de 88 concede o pleno direito de greve.
Diz que vai haver uma regulamentação posterior, mas o preceito constitucional é
o direito de greve. O governo Lula, por sua vez, está dando passos - e ainda vai
tentar, pois não desistiu disso – no sentido de tentar coibir, restringir e, em
certo sentido, impedir mesmo o direito de greve em vários setores do
funcionalismo público.