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Latinoamérica

Lula manteve a ortodoxia financista e neoliberal e tratou de combinar isso com uma ênfase maior nas exportações e nas políticas sociais compensatórias

Entrevista Armando Boito Jr *
Que rumo para o Brasil?

Entrevistado por João Valente Aguiar

(estudante de Sociologia na Faculdade de Letras do Porto)
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Num ano marcado pelas eleições presidenciais no Brasil, é de todo pertinente fazer-se um balanço do que foi o governo Lula, qual o avanço do neoliberalismo e a necessária resposta das massas populares. Assim, procurou-se perceber que perspectivas se desenham no horizonte político e social brasileiro no momento actual.

- Que balanço geral fazes das políticas levadas a cabo pelo governo Lula? Tanto a nível interno como externo.

No plano interno, Lula manteve a ortodoxia financista e neoliberal e tratou de combinar isso com uma ênfase maior nas exportações e nas políticas sociais compensatórias. Isso lhe valeu a manutenção de um apoio forte e explícito dos grandes bancos nacionais e do capital financeiro internacional, ao mesmo tempo que aplacou a insatisfação e a crítica da grande burguesia interna industrial e agrária, principalmente das grandes empresas exportadoras, e lhe valeu uma simpatia maior dos sectores extremamente pobres e política e socialmente desorganizados. Esses sectores tinham votado massivamente em Fernando Henrique Cardoso pelo fato de o antigo presidente ter, quando fora ministro da Economia do Governo Itamar Franco, aplicado o Plano Real, derrubando a inflação e permitindo um pequeno aumento na renda da população mais pauperizada. Agora, votam com Lula, porque ele unificou as várias "bolsas" de ajuda aos pauperizados, criadas pelos governos anteriores (Sarney, Collor, FHC), em uma única ajuda (o Bolsa família), o que deu mais visibilidade ao programa de ajuda, e aumentou em cerca de três vezes o número de assistidos. Com Lula, portanto, o modelo económico foi mantido e ampliou a sua base social entre os de cima e os de baixo.

Na comparação com outros países da América Latina, Lula é a retaguarda dos novos governos reformistas. Nestor Kirschner, na Argentina, investiga as torturas do período da ditadura militar, prende torturadores e mandantes, reestatizou o serviço de água, renegociou a dívida externa, reduzindo-a a 25% do que era antes, e faz o país crescer em média 8% ao ano. Evo Morales iniciou um processo de nacionalização dos recursos naturais e está iniciando o processo de convocação de uma Assembleia Constituinte com participação popular. Hugo Chavez enfrenta o imperialismo estadunidense. Lula, sem hostilizar esses governos, procura manter distância e se nega a implementar políticas semelhantes no Brasil. O que ele faz é procurar abrir mercado para o agro-negócio brasileiro para aumentar as exportações. Tal qual FHC, insiste na necessidade de os países centrais suspenderem o proteccionismo dos seus produtos agrícolas e procura abrir mercados novos para a produção agrícola, de recursos naturais e da indústria de baixa densidade tecnológica brasileira. A sua política externa está indissoluvelmente vinculada à sua política interna – não é melhor, nem pior.

- Tens desenvolvido nalguns trabalhos teus a tese do neoliberalismo como uma hegemonia regressiva. Em linhas gerais, em que consiste esse teu conceito? De que forma achas que este conceito pode ajudar a explicar: a) o comprometimento do governo Lula com o ideário neoliberal apesar do seu grande apoio popular, aquando da sua eleição em 2002; b) a inércia de grande parte das massas populares brasileiras – fruto da penetração da ideologia política neoliberal no seu seio – mais despolitizadas e desorganizadas face aos ataques que têm sido alvo por este governo.

O impacto popular do neoliberalismo no Brasil é real, antecede de muito o Governo Lula e é um fato que a esquerda sempre evitou encarar. Fernando Collor de Mello, um presidente ultra-conservador, venceu Lula, em 1989, agitando um programa explicitamente neoliberal numa campanha em que o discurso e o programa de Lula defendiam a implantação de um Estado de bem-estar no Brasil. Lula foi batido porque no eleitorado com renda inferior a cinco salários mínimos (o salário mínimo brasileiro equivale à insignificante quantia de 115 euros). Essa população extremamente pobre, que representa a imensa maioria dos brasileiros, votou maioritariamente em Collor, como indicaram todas as pesquisas de intenção de voto da época. O discurso neoliberal, de algum modo, encontrou receptividade nessa parte da população. Depois, veio Fernando Henrique, que também venceu Lula entre a população de baixa renda nas eleições presidenciais de 1994 e 1998. Em 2002, deu Lula. FHC estava muito desgastado e Lula havia abandonado a crítica ao neoliberalismo e o projecto de implantação de um Estado de bem-estar no Brasil.

- É esse impacto popular do neoliberalismo, patente na história recente das eleições brasileiras, que eu tenho denominado hegemonia regressiva. Hegemonia, porque neutraliza ou atrai sectores populares que são prejudicados pelo próprio neoliberalismo; regressiva, porque mantém a pobreza e a concentração da propriedade e da renda. Mas, como explicar esse impacto popular?

Penso que a explicação encontra-se no carácter excludente e desigual dos direitos sociais no Brasil. Grande parte da população é mantida fora dos direitos sociais. Por exemplo, o desempregado, o subempregado ou que trabalha regularmente mas sem contrato de emprego formal, está excluído do sistema de aposentadoria. E, entre os que têm acesso a esses direitos, há muita desigualdade no seu usufruto. Tudo isso fez com que as camadas mais pauperizadas passassem a desconfiar da solução pela via da ampliação dos direitos sociais. Essa população tornou-se disponível para o discurso das políticas compensatórias, idealizadas pelo Banco Mundial. Trata-se de uma situação muito complexa: a política para os milionários, rentistas, enfim, para os mais ricos, é implementada contando com um apoio eleitoral difuso dos mais pobres.

- Apesar de ainda faltarem alguns meses, que perspectivas globais podes dar relativamente às próximas eleições presidenciais de Outubro? Que papel podem ter os movimentos sociais e partidos políticos à esquerda de Lula na conjuntura actual?

A situação é muito complexa e difícil. O lulismo, que é algo muito mais amplo que o Partido dos Trabalhadores (PT), não é uma corrente de esquerda. Representa a integração de antigas lideranças políticas e sindicais dos assalariados de classe média e operários ao modelo neoliberal e, em geral, ao capitalismo dependente. Se eleito, Lula dá todos os indícios que manterá o modelo atual e acena ainda com a necessidade de novas reformas neoliberais – nova reforma da previdência, reforma sindical e trabalhista e outras que foram suspensas devido aos escândalos de corrupção no qual o seu governo se envolveu. Quem se opõe ao lulismo? De um lado, a direita liberal tradicional representada pelo PSDB e pelo PFL. Se esse setor vencer, poderá ocorrer uma redução dos gastos com políticas compensatórias – talvez seja essa a única diferença. Mas, de outro lado, a esquerda procura se organizar. Teremos a candidatura do PSOL – Heloísa Helena secundada, ao que tudo indica, por Cesar Benjamin. O PSOL tenta colocar em pé um programa democrático e popular, mas o partido é muito dividido e também muito marcado pelo parlamentarismo e pelo personalismo. Apesar disso, na minha opinião, os socialistas e anti-imperialistas no Brasil devem, no que diz respeito ao processo eleitoral deste ano, lutar por uma campanha eleitoral avançada do PSOL e, obtido isso, apoiar essa candidatura.

- Na tua opinião, pensas que o neoliberalismo está a mostrar sinais de esgotamento no Brasil ou ainda existe espaço para um maior aprofundamento das políticas de contenção [arrocho] salarial, privatização de serviços públicos (saúde, educação, segurança [previdência] social), limitação de direitos sindicais, etc?

Esse modelo é a contra-revolução permanente e no Brasil há espaço para aprofundá-lo ainda mais. Lula criou as Parcerias Público-Privado, que inicia o processo de privatização de inúmeros serviços e dos equipamentos de infra-estrutura; criou também uma nova lei de falência que prioriza os interesses dos credores da empresa falida em detrimento das dívidas trabalhistas, alterando o que estabelecia a antiga lei; iniciou uma reforma trabalhista que preconiza o fim de direitos e que só não foi à frente devido aos escândalos de corrupção envolvendo o seu governo, ele e a sua família. Quanto ao Geraldo Alckimin, que é o candidato à presidência pelo PSDB, ele já fala em uma nova reforma da previdência. Para as grandes empresas não existe isso de esgotamento do modelo não. O único obstáculo real é a luta dos trabalhadores, como pudemos ver recentemente na França.
 
* Professor de Ciência Política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Brasil.      

Fuente: lafogata.org