Latinoamérica
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"O PT está num processo de mutação genética para pior"
"Seria importante enfrentar a dor, mexer e consertar as coisas para
reacender a chama da esperança"
Entrevista do deputado Flavio Koutzii, líder da bancada do PT na Assembléia
Legislativa (Porto Alegre- Rio Grande do Sul), publicada na Zero Hora de sábado,
dia 15 de abril de 2006
http://www.flaviokoutzii.com.br/
Um parlamentar em quarto mandato consecutivo que decide não tentar a reeleição é
uma raridade. Ex-preso político torturado pela ditadura argentina que chegou à
chefia da Casa Civil no governo Olívio Dutra (1999-2002), o deputado estadual
Flavio Koutzii (PT), 63 anos, se considera sem energia para enfrentar uma
eleição dando explicações sobre o escândalo do mensalão.
Membro da corrente Esquerda Democrática, ele decidiu criar um "mal-estar" para a
ala majoritária do PT. Quer espaço para criticar. Sem direito à aposentadoria
especial - benefício extinto em 1990 a partir da pressão petista -, Koutzii
começa a nova fase vivendo das economias reunidas nos últimos meses.
- Tenho um plano vago do que vou fazer. Vou escrever, dar palestras - revela.
Na quinta-feira, o deputado escolheu uma cafeteria no bairro Moinhos de Vento
para conversar com Zero Hora. Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
Zero Hora - Quase um ano depois, qual é o balanço da crise que se abateu
sobre o PT?
Flavio Koutzii - Sofremos uma grande derrota. Chegamos ao governo e produzimos
decisões políticas e traições programáticas que agora chamamos de erros. Mas
errar é tentar achar um caminho. O que ocorreu foram escolhas que resultaram num
acontecimento histórico brutalmente trágico.
ZH - Como essa derrota se reflete na sua trajetória?
Koutzii - Sou pós-graduado em derrotas. A primeira foi a partir de 1964, quando
a esquerda perdeu o enfrentamento contra a ditadura. Deixo o Brasil em 1970 e
entro num projeto na Argentina (Koutzii foi militante do Partido Revolucionário
dos Trabalhadores - Exército Revolucionário do Povo, organização de extrema
esquerda dizimada pela ditadura militar argentina instaurada em 1976). Sou preso
por quatro anos, torturado e expulso do país. É outra derrota, com a morte da
metade do meu grupo. Os sentimentos de responsabilidade, de culpa e até de
sobrevivência são temas delicados de se lidar.
ZH - A crise do PT é sua terceira derrota?
Koutzii - Depois de 14 anos fora do país, recomecei pela terceira vez no PT. O
partido foi um caminho com muitas vitórias. A noção de derrota está presente nos
últimos 11 meses.
ZH - É por isso que deixará de concorrer?
Koutzii - Há duas razões. A pessoal é a de que não tenho mais a mesma energia.
Conheço meus limites, coragem e covardia. São 43 anos de vida pública que me dão
experiência para me situar. Recorro ao meu livro sobre o período argentino, cujo
título, talvez a única parte literariamente boa, é Pedaços de Morte no Coração.
Desta vez, pegou mais um pedaço do coração. O partido que havia antes da crise
ajudava a recompor os pedaços que eu havia deixado pelo caminho.
ZH - E qual é a outra razão?
Koutzii - Há uma dimensão política mais importante que a pessoal. Não sou um
velhinho cansado, com idade de se aposentar. Sou um cara com quatro mandatos e
oito anos como líder da bancada. Esse cara, que teria razoável probabilidade de
se reeleger, não faz o que 98% dos políticos fariam. Não faz porque não gostou.
Porque não pretende assinar embaixo. A crise me tirou o discurso e me colocou
numa situação defensiva.
ZH - O caso do caseiro mostra que o PT não aprendeu a lição?
Koutzii - Trata-se da reiteração do uso de métodos pelos quais os fins
justificam os meios. Mas temos de saber que os meios alteram os fins. A vitória
e as dificuldades eram tão grandes que algumas estratégias e a forma de garantir
a maioria no Congresso determinaram a produção de métodos inaceitáveis. Podem me
explicar cem vezes essa racionalidade política, mas não vou aceitar.
ZH - Sua decisão, então, é um ato político.
Koutzii - Quero produzir uma pequena perplexidade, um mal-estar. No Rio Grande
do Sul, sei que dão bola. Estou tão revoltado que preciso de um tempo para
analisar o quadro. O problema é que estamos entrando numa época eleitoral, na
qual o domínio é do pragmatismo. Ou falo sobre o dilema dos nossos desafios ou
prefiro calar a boca.
ZH - Esse dilema é uma espécie de esperança no PT?
Koutzii - A situação é tão trágica que só há duas saídas: ou a direção nacional
atua fortemente ou fica uma coisa morna, a mesma que nos trouxe até aqui. A
primeira oportunidade de agir havia sido a eleição interna, em outubro. A casa
havia caído, assuntos graves estavam na agenda e os petistas foram votar. Mas
qual foi o resultado? Uma modificação na correlação de forças insuficiente para
dar um novo rumo para o PT.
ZH - Qual a possibilidade de reeleição de Lula?
Koutzii - A possibilidade existe. O governo tem méritos. Podemos ter muitas
semelhanças com o governo Fernando Henrique Cardoso na política econômica, mas
não em outras áreas. O governo do PT possibilitou um novo quadro político na
América Latina, parou as privatizações, reforçou a Petrobras e a construção de
navios e plataformas de petróleo aqui. O partido vai para a disputa com um
argumento muito forte: as grandes desigualdades brasileiras não deixaram de
existir por causa do escândalo.
ZH - O que o senhor diria a outros petistas inconformados?
Koutzii - Não podemos perder o espírito crítico que nos levou a integrar esse
projeto, senão ele vai para o vinagre. O PT está num processo de mutação
genética para pior. Seria importante enfrentar a dor, mexer e consertar as
coisas para reacender a chama da esperança.