Latinoamérica
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A conversão dos bárbaros
" A trombeta da liberdade ja soou, e nao foi com um toque de recolher"
(George W. Bush, Le Monde, 10 de marco de 2005)
Jose Luis Fiori
O New York Times publicou, recentemente, uma matéria sobre o funcionamento
das 20 agencias federais americanas encarregadas pela administração Bush, de
formar a opinião pública nacional e internacional através de matérias e
entrevistas de autoridades, pré-fabricadas e distribuídas prontas para os
jornais e as televisões de todo mundo. Resultado: cada vez mais, a grande
imprensa americana e européia se move de forma sincronizada, e às vezes se tem a
impressão que os fatos se transformam em acessórios de grandes campanhas e
mobilizações publicitárias, em escala global. Isso ocorreu, por exemplo, com a
recente reunião de Bruxelas - no dia 22 de fevereiro passado - entre o
presidente Bush e os governantes europeus. As notícias foram substituídas pelas
imagens, e as divergências efetivas foram trocadas por uma imagem e um
sentimento publicitário de reconciliação e fraternidade, entre os Estados Unidos
e a Europa, apesar de que os desacordos entre americanos e europeus tenham
permanecido quase os mesmos, depois da reunião de Bruxelas. Logo depois, uma
nova "onda sentimental" tomou conta da imprensa dos dois lados do Atlântico, uma
espécie de autocongratulação coletiva pela "redemocratização do Grande Oriente
Médio", anunciada pelo presidente norte-americano, numa conferência na
Universidade de Defesa de Washington, feita no dia 8 de marco. "O degelo começou
e a historia evolui rapidamente […] as trombetas da liberdade estão soando…" (Le
Monde, 10 marco, p;3). Alguns dias antes, a secretária de estado americana,
Condolezza Rice, afirmou com todas as letras numa cadeia de televisão americana,
que "esta era uma vitória do espírito humano, da vontade do homem ser livre", e
o jornal New York Times, que apoiou os democratas nas últimas eleições
presidenciais, fez uma homenagem ao presidente Bush, "a quem se deve atribuir -
segundo o jornal - uma boa parte do crédito por estes novos acontecimentos".
Numa linha ainda mais radical, a Revista Newsweek, propôs uma revisão da
história recente e o reconhecimento da "visão histórica" do presidente Bush. Na
mesma hora, o senador Edward Kennedy, que criticou a invasão do Iraque,
reconheceu o crédito de Bush, nas mudanças positivas do Oriente Médio. Quase nos
mesmos dias, a imprensa européia discutiu exatamente o mesmo assunto, ainda
quando tenha mantido uma posição mais analítica e discreta. Como conseqüência,
por todo lado se difundiu instantaneamente a idéia e o sentimento positivo de
que o mundo estaria vivendo uma repetição das "revoluções de veludo" da Europa
Central, do início da década de 90, só que agora, no Afeganistão, na Ucrânia, no
Líbano, na Palestina, no Egito, no Iraque e na Arábia Saudita. Por todos os
lados, estaria em curso um movimento massivo e espontâneo, quase telúrico, de
sublevação das massas populares - em busca da liberdade - desencadeado a partir
do Iraque, o que acabaria justificando ex-post as guerras desencadeadas na
região, pelo presidente Bush - verdadeira origem - ainda que trágica - desta
verdadeira "primavera árabe".
No momento, a opinião pública internacional parece perplexa frente ao esta
acontecendo, e por isso, mais do que nunca, é preciso manter a objetividade. E
nesse caso, a primeira coisa importante que se deve entender é que, de fato, o
Oriente Médio e a Ásia Central foram abalados profundamente pelas guerras do
Afeganistão e do Iraque. Alias, não poderia ter acontecido outra coisa, depois
de duas guerras arrasadoras, numa mesma região e num lapso de apenas dois anos.
No mínimo, ficou claro em toda a região do "Grande Oriente Médio", que os
Estados Unidos vieram para ficar, e que ninguém desafia hoje o poder americano
impunemente, exatamente como ocorreu, na mesma região, com o poder imperial
britânico, nos tempos da Rainha Vitória. Portanto, não há como se enganar,
porque a presença militar americana na região, a partir de agora, terá um papel
decisivo nos desdobramentos da política interna dos países de toda a região. Mas
isto não significa necessariamente que o "Grande Oriente Médio" vá se
transformar numa região democrática, segundo a vontade e o modelo anglo-saxão.
As eleições do Afeganistão confirmaram o governo escolhido pelos invasores, mas
sua autoridade vai pouco além dos subúrbios de Kabul, num país onde quase todas
as demais regiões voltaram a ser controladas pelos seus antigos "senhores da
guerra" pelos produtores de papoulas para a produção de heroína e pelos próprios
talibãs, que pouco a pouco vem retomando suas velhas zonas de influência. As
eleições no Iraque, por sua vez, só se realizaram porque foram exigidas e
garantidas pelo Ayatolla Sistani, no momento em que as autoridades
norte-americanas pensavam em postergá-las. Foi uma vitória e uma revanche da
maioria xiita, de influência iraniana, que chega ao poder de forma paradoxal,
pelas mesmas armas americanas que ameaçam invadir e derrubar o regime xiita do
Iran, logo do outro lado da fronteira. As mudanças na Palestina e no Líbano
ocorreram na seqüência de duas mortes que ainda não foram esclarecidas: a doença
de Yasser Arafat, e o atentado contra o antigo primeiro ministro libanês, Rafik
Ariri. Duas mortes que provocaram, num primeiro momento, um deslocamento
político, na direção dos interesses estratégicos americanos, muito mais do que
um processo de redemocratização. Mas mesmo assim, no caso da Palestina, as
negociações com Israel estão praticamente paralisadas, desde a cúpula de Charm
El-Cheikh, no Egito, no dia 8 de fevereiro. E, no caso do Líbano, a "revolução
da cidra", foi seguida imediatamente por massivas manifestações xiitas,
lideradas pelo movimento Hizbollah, e pela volta ao governo do primeiro-ministro
"pro-sírio" de Omar Karameh, que havia renunciado há uma semana, sob pressão do
movimento popular de oposição, reabrindo o conflito que foi responsável pela
violenta guerra civil do Líbano, na década de 80. No Egito e na Arábia Saudita,
aliados incondicionais e protetorados militares dos Estados Unidos, o anúncio do
presidente Mubarak de eleições presidenciais competitivas foi muito mais
impreciso e encomendado do que as eleições locais realizadas pelas autoridades
sauditas, sem a participação da população feminina. No resto da região, não se
escuta uma só nota da "trombeta libertaria" do presidente Bush, nos territórios
do Paquistão, da Tunísia, da Jordânia, do Yemen, do Kuwait, ou mesmo, no caso da
Líbia e da Argélia. E só olhar para o mapa geopolítico da região, para ver que
até agora, os movimentos populares pró-democratização, só aparecem e se expandem
dentro dos países que não são aliados dos Estados Unidos, e que além disto, em
todos os casos, essas "explosões democráticas" têm sido obra de grupos ou
minorias nacionais ou religiosas que foram reprimidas e que agora estão sendo
"libertados" pela geopolítica americana, dentro da região. Esta combinação de
interesses e de estratégia "revolucionaria" não é completamente nova. Foi
concebida durante a Primeira Guerra Mundial, pelos próprios ingleses e nesta
mesma região, logo depois de sua derrota militar, na Turquia, durante a Primeira
Guerra Mundial. Para destruir o Império Otomano aliado dos alemães em 1914,
adotaram uma nova estratégia, concebida pelo T. E. Lawrence, o estranho
professor de historia de Oxford, que se transformou em personagem lendária
durante a Primeira Guerra, no Oriente Médio, Tratava-se de destruir a Turquia e
o Império Otomano, utilizando as próprias divisões internas dos povos árabes que
foram organizados e armados para lutar contra o seu próprio Império, em troca da
promessa de liberdade e soberania nacional, depois da guerra. A história é
conhecida, e todos sabem, que isto não ocorreu, porque depois da guerra, na
Conferência de Paris, em 1918, o Oriente Médio foi recortado e entregue a tutela
da Inglaterra e da França, transformando-se em novos pedaços dos seus velhos
impérios coloniais.
Deste ponto de vista, a experiência recente da "revolução laranja", na Ucrânia,
é verdadeiramente paradigmática, porque ocorreu num território situado
historicamente dentro da zona de influência política e econômica "indiscutível"
da Rússia, mas contando com uma grande população de origem polonesa. A Ucrânia
nunca foi considerada parte da "Europa Central", libertada pelas "revoluções de
veludo", mas depois de 1991, os Estados Unidos tem demonstrado uma firme decisão
de retirar também este território da influencia russa, o que representaria uma
mudança radical na geopolítica eurasiana dos dois últimos séculos. Alem disto,
representaria uma derrota geoeconômica muito importante, para a Rússia, porque a
Ucrânia, junto com a Geórgia e a Moldavia são hoje o principal corredor de
comunicação, entre o mar Negro e o mar Báltico e, portanto, do escoamento do
petróleo do Mar Cáspio, do maior interesse das petroleiras e do governo russo.
Em síntese, trava-se hoje na Ucrânia uma pesadíssima batalha geopolítica e
geoeconômica entre os Estados Unidos e a Rússia, que esteve por trás das ultimas
eleições presidenciais ucranianas, e do nascimento midiático da "revolução
laranja". Na Ucrânia, como nos demais paises envolvidos nesta história, existem
forças represadas há muito tempo, e que pressionam por mudanças políticas
somando-se as pressões externas e aos interesses estratégicos dos Estados Unidos
e da União Européia que apontam, na verdade, para uma mudança imediata da
correlação de forças dentro de cada um desses paises, mas não necessariamente,
para a formação e consolidação de regimes democráticos. Como no caso da
estratégia dos "contra" utilizada por Ronald Reagan, na década de 80, para lutar
contra, e derrubar governos e regimes contrários aos interesses norte-americanos.
Em síntese: o presente não é nada animador, ao contrário do que diz a grande
imprensa, os desdobramentos futuros são rigorosamente imprevisíveis, e os
ensinamentos passados da história não falam muito bem das "democracias
ocidentais". Aliás, neste sentido, o presidente Bush não e um pioneiro, dentro
dos Estados Unidos. Muito antes dele, Theodore Roosevelt invadiu o Haiti, em
1902, com a intenção de impor-lhe um regime democrático. Uma história conhecida
e que ainda não terminou, um século depois.